Revista de Nossa Senhora
  • Administração: Rua Angá, 994 – VI. Formosa – São Paulo – SP
  • Telefax: (11) 2211-7873 – E-mail: contato@revistadenossasenhora.com.br


A ética da dor

Publicado em 2 de junho de 2014 / Reportagens >

teen depression, tunnelSe a dor desaparecesse totalmente do corpo humano, não se controlariam os perigos para a saúde. Ela serve de alerta, sinal, sintoma de que algo não funciona bem no corpo e conduz o médico à busca de diagnóstico correto.

A dor continua sendo espinho na experiência humana. A complexidade do ser humano a faz bater no corpo, na alma, no espírito. E a luta continua para aboli-la em todos os campos. No horizonte caminha-se para vitória total contra ela ou trata-se de ilusão? A dor só possui valência negativa a ser negada? Negar a negação significa avanço, conforme a mais comezinha aritmética: menos vez menos é mais. Ou será que a dor pertence às experiências fundamentais da vida humana e possui aspecto positivo? E negar totalmente o positivo não nos leva segundo a mesma aritmética ao negativo? Mais vez menos é menos. Eis a pergunta ética.

A medicina navega entre o rochedo de Cila e o turbilhão de Caríbdis no Estreito de Messina. Com a anestesia tem eliminado a dor física. Ela incomoda e, às vezes, inutilmente e com algum anestésico se elimina. Benditos pro-gressos da medicina que nos poupam de tanto sofrimento físico!
Entretanto tem-se criado perigosa cultura da eliminação de qualquer dorzinha por crescente dose de analgésicos que as pessoas tomam por conta própria. Não toleram nenhum incômodo parecido com dor.

Vejamos o risco. Se a dor desaparecesse totalmente do corpo humano, não se controlariam os perigos para a saúde. Ela serve de alerta, sinal, sintoma de que algo não funciona bem no corpo e conduz o médico à busca de diagnóstico correto. Sem sinais dolorosos, a morte chegaria antes de se descobrir a doença. Bendita dor salvadora! A ética não abona o uso exagerado de analgésico da cultura atual por causa da insuportabilidade do mínimo sinal de sofrimento. Atenção à perniciosa propaganda da indústria farmacêutica!

E quando a dor atinge a psique? Aí a situação se complica. Ela não cede instantânea e definitivamente à cura da medicina. Cede diante de antidepressivos, mas passado o efeito do remédio, volta. E, não raro, mais forte. Revela com maior clareza a fragilidade humana.

Há pessoas que sofrem longos períodos de depressão. E algumas não o suportam e terminam tirando-se a vida ou metendo-se em drogas violentas que levam ao mesmo fim. Se o ser humano não se educa a conviver e a trabalhar a dor psíquica, viverá escravo de remédio.

De novo, entra a ética da dor. Não se trata de eliminar sem mais o sofrimento psíquico, mas de ajudar as pessoas humanas a assumirem a si mesmas sem ilusões de felicidades fáceis. Momentos de solidão, de dor interior fazem parte do crescimento humano. Ensinam a pessoa que quanto mais fechar-se e prender-se a si mesma, mais afundará na noite afetiva. E a saída para os outros, ações de solidariedade, empenho em serviços altruísticos a ensinarão encontrar a paz que os prozacs só oferecem artificial, superficial e momentaneamente.

E a dor do espírito? Diferente. Dorme em cada ser humano, mesmo que não saiba e não queira admitir, o infinito do Deus criador que o chamou para si. Dor de eternidade. Nenhuma medicina cura. Só o cultivo da espiritualidade e do amor dedicado aos irmãos canaliza tal inquietude dolorosa. Santo Agostinho, atormentado por ela, exclamou: Inquieto, Senhor, está o nosso coração até que descanse em ti!

Pe. João Batista Libânio, SJ
(in memorian)