Revista de Nossa Senhora
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Você acessou a Edição Setembro de 2011

Pra Começo de Conversa…

Os caros leitores já perceberam que nossa revista, com o DNA de nosso Fundador, Padre Júlio Chevalier, sempre focalizou em suas páginas, o tema Missões. Nos primórdios de nossa fundação, quando eram ainda pouco numerosos os seus membros, a Congregação recebeu de Roma um apelo, um desafio que era quase uma provocação: assumir as difíceis missões da Micronésia, no Pacífico!

Os padres conselheiros achavam impossível atender ao pedido da Propaganda Fidei, mas o Padre Chevalier, homem dotado de grande coragem e generosidade, teimosamente conseguiu persuadir seus confrades e, em 1881, enviava seus primeiros missionários àquela misteriosa região da Oceania. E aí a pequena Congregação começa a florescer…

Já faz 130 anos que nossos missionários trabalham naquela região, já com clero nativo, padres e bispos, e muitas vocações. Por lá passaram figuras extraordinárias da envergadura de Mons. Navarre, Mons. Verjus, Dom Alan de Boismenu e tantos outros, É a razão pela qual nossa Revista de Nossa Senhora continua mantendo esse compromisso de honra, trazendo sempre em suas páginas esse tema tão importante e tão caro à Igreja.

Atualmente, tempos novos e contextos diferentes, os confrades Antônio Carlos Meira e Reuberson, respectivamente no Equador e na Amazônia, são nossos representantes e interlocutores, contando a cada mês, um pouco da bela obra de evangelização que eles e seus companheiros realizam com destemor e generosidade.

Evangelizar a partir dos pobres: respeitar as tradições e os ritmos próprios desses povos ainda permanece o grande desafio. É a reflexão de nosso confrade que hoje trabalha em Porto Viejo, no litoral do Equador.

E vocês, leitores, encontrarão ainda nessas páginas, aqueles temas e aqueles colaboradores que já estão se tornando tão familiares nossos.

Pra todos uma proveitosa leitura!

A REDAÇÃO.

 

Julgar os vivos e os Mortos

A cada momento estamos diante do juízo de Deus. No entanto, julgamento – na Bíblia – não se assemelha a um tribunal humano, no qual nós somos o réu. Trata-se de discernimento, clareza, percepção e transparência. Como criaturas, somos limitados em nossa consciência e liberdade, não sabemos tudo e não conseguimos prever toda consequência de nossos atos. Não podemos tudo. Somos condicionados e determinados pela educação, pela família, pelo meio social, pela nossa condição de seres carentes, imperfeitos e inacabados, pelo nosso inconsciente. Somos carnais. Na Bíblia, carne significa criatura humana e ao mesmo tempo fragilidade.

Temos a capacidade de decidir e escolher como seremos, mas sempre com a liberdade situada num contexto de múltiplas influências e condicionamentos. Somos finitos, imperfeitos, marcados pela ambiguidade e pelo pecado. Pecado refere-se a tudo o que nos desumaniza, ao fechamento a Deus e ao outro, ao mal infligido a nós e às pessoas, ao meio ambiente e à sociedade através de nossas relações interesseiras e egoístas.

Quando tomamos uma decisão, agimos, fazemos o bem ou o mal, dizemos alguma coisa, nos relacionamos com as mais diversas pessoas, não conseguimos perceber a nossa influência, as consequências do que fazemos sobre os outros e sobre o nosso mundo. Uma simples palavra, gesto ou atitude repercute para o bem ou para o mal. Lembro-me de um fato acontecido: uma pessoa comentou com a outra sobre uma celebração eucarística no final de semana em que se abordava o tema da abertura e do fechamento usando como símbolo uma chave. Esta segunda pessoa comentou com uma terceira. Isto ressoou tão forte e positivamente sobre a terceira pessoa, que ela voltou para a Igreja depois de um bom tempo de afastamento. Não sabemos o que podemos provocar no sentido positivo ou negativo na outra pessoa como fruto de nossas relações. Podemos aproximar as pessoas de Deus ou afastá-las definitivamente. Podemos causar-lhes um grande bem ou um grande mal.

Dizer que Deus virá julgar os vivos e os mortos, significa afirmar: Deus virá nos dar a clareza, o discernimento, a percepção e a transparência a respeito de todos os nossos atos, sobre a validade de nossa vida, a repercussão de nossas atitudes e palavras. O que somos tornar-se-á claro.

O Deus que virá julgar/ajudar a discernir é o Deus Pai de Jesus Cristo. Um Deus de amor e carinho, beleza e compaixão, misericórdia e ternura. Alguém que nos envolve em sua bondade e deseja que o ser humano tenha vida em plenitude, seja feliz e se realize como a obra prima que Ele mesmo criou. Portanto, o julgamento ou discernimento do juízo final não traz medo para aqueles que sempre viveram na luz, na esperança. Traz a certeza de que os verdugos não triunfam sobre a vítima e desmascara toda falsidade e toda hipocrisia. Torna o obscuro revelado.

Pe. Paulo Roberto Gomes, mSC é teólogo e pároco da comunidade São Paulo em Muriaé , MG.

 

Evangelizar a partir dos pobres

Fé, trabalho e muita bênção

No meio de tanto pó, grupos de mulheres e crianças caminham pelas estradas, atravessando os montes, carregando lenha. São os últimos bosques de eucaliptos que estão tirando desta região semi-deserta de Palmira. Uma região onde nunca houve florestas naturais devido à altitude. Muita gente, antes da chegada do gás, cozinhava com palha seca do campo. Hoje o gás facilitou a vida e os restos de bosques plantados ainda esquentam a casa nas madrugadas frias.

As mulheres passam sentadas ao lado de um fogão, que é feito de uma mistura de pedra com pedaços de ferro, para manter o fogo aceso. Como a palha queima rápido, elas estão alimentando o fogo constantemente com o capim. A vida no alto das montanhas passa a ser uma aventura: além do frio constante, as dificuldades causadas pelas distâncias e as necessidades fizeram dos indígenas homens e mulheres fortes. Situações difíceis que exigem adaptação e confiança sobre-humana.

Em geral, as pessoas são muito religiosas. A fé se expressa nos sinais e cuidados com a vida de uma criança, por exemplo. A proteção para um recém-nascido não passa pela higiene, por mais que se insistia nesse ponto. A confiança e a esperança estão em Deus para que livre os pequenos das enfermidades. Numa celebração com muitos batizados e alguns matrimônios, a maioria das pessoas está à espera da água benta antes de sair da igreja. Quando termina a celebração, ao sair do altar, é comum a formação de uma fila de crianças de uns seis anos carregando outras menores amarradas nas costas que chegam correndo para pedir a bênção.

Viver com confiança

O tema da religião no mundo indígena é complexo e delicado. Sua maneira de viver passa por uma cosmovisão das crenças nos perigos que estão nas montanhas, como na esperança num Deus que sempre é uma ameaça com seus castigos. É uma relação de temor e confiança, proteção e maldição. Nas alturas, por exemplo, há muitos casos de gente que morre vítima de raios, com as chuvas que vêm do oriente amazônico. As mortes são interpretadas como destino, fatalidade para a vida humana.

Por outro lado, Deus também é amigo e presenteia com a chuva, a vida das crianças, como a defesa da saúde. As montanhas também esperam sacrifícios, oração e respeito sagrado, como podem, também, representar castigo para as pessoas. Há dois ou três anos que um catequista está com a filha doente e ninguém tira de sua cabeça que ela dormiu numa destas montanhas e foi castigada por um espírito mau. A solução, para ele, está nos curandeiros.

Há que passar pelas provas

Tivemos uma assembleia de catequistas, em Palmira, na qual se conversou de tudo, desde a razão pela qual ainda precisamos do sacerdote para fazer um casamento, como as crises que eles vivem nos seus lugares: falta apoio da comunidade para certos trabalhos de evangelização; reuniões dominicais parecem difíceis para alguns catequistas porque não conseguem atrair mais gente. As divisões políticas implantadas pelo governo repercutem na vida das lideranças indígenas.

A mentalidade nas comunidades está muito misturada com uma série de mudanças que acontecem hoje em dia. Assim como a comida vai deixando de ser cozida no fogão de palha, substituído pelo gás, também a juventude vai exigindo mudanças nos métodos de ensino e nas formas de celebrar. A realidade vem carregada de contradição. Internamente, muitos permanecem num esquema mental de celebrar com uma lista de coisas tão grande que se levam horas e horas para realizar uma celebração. Outras mentalidades querem menos palavras e mais animação. Nisso os evangélicos colocam problemas para os catequistas, dizendo que não valem nada porque não mudam a maneira de organizar e celebrar. Alguns lutam intensamente para não cair no desânimo.

Evangelizar a partir dos pobres

Esta região está marcada pela pobreza. A agricultura familiar ainda proporciona algo para viver. Na feira ou no mercado os produtos agrícolas e animais não têm preço. O indígena ainda carrega o estigma marginal de que pouco vale socialmente. É explorado no trabalho. Na vida cotidiana, as mudanças da sociedade chegam como um vendaval. Os terrenos comunitários estão sendo divididos, família por família, para evitar problemas. Cada um cuida do seu pedaço de chão. A realidade impõe a migração como forma de vida; as famílias ficam debilitadas e as relações na comunidade perdem força.

A Igreja sempre trabalhou no meio indígena sem levar em conta as diferenças culturais. Hoje se discute muito como ser presença missionária nas comunidades. Nem sempre se chega a um consenso sobre este assunto. Quando o assunto era ajudar com o desenvolvimento econômico, parece que as coisas tinham um rumo mais claro. Porém, entrar na realidade cultural, pouco se avançou nesses anos. Respeitar suas tradições e ritmos próprios, ainda permanece um grande desafio.

Pe. Antonio Carlos de Meira, mSC, é missionário no Equador.